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Crente, Cético e Cínico

28/01/2012

As três facetas se alternam na vasta produção do escritor italiano Umberto Eco. Em “O Cemitério de Praga”, seu romance mais recente, a que predomina é a debochada
por André Nigri.
 
Imaginemos três avatares de Umberto Eco sentados em uma sala repleta de livros. Um deles é o semioticista. Outro, o cético inabalável. O terceiro é o cínico, com um sorrisinho no canto dos lábios. Enquanto o primeiro garante que o mundo é uma teia de signos a serem decodificados, o segundo afirma que o Universo é uma soma absurda de acasos cujo controle não nos é facultado. Quando chega sua vez, o cínico sentencia: “As pessoas só creem naquilo que sabem”. Qual dos três é o verdadeiro Umberto Eco? Os três.

A frase pronunciada pelo cínico consta do mais recente livro do autor italiano, O Cemitério de Praga, romance lançado no Brasil no mês passado com explosivo sucesso de crítica e de público – no total, já vendeu mais de 1 milhão de exemplares, e, por aqui, bateu o número das 40 mil cópias e caminha para a terceira edição. Com esse novo “suspense erudito”, gênero que Eco fundou e de que é mestre, sua literatura destila uma bile debochada.

Conhecidos há muito tempo nos meios intelectuais, os ensaios de semiótica de Eco eram, nas décadas de 1960 e 70, missais nas carteiras de universitários mundo afora. Em um de seus livros mais incensados, Obra Aberta, de 1962, ele teoriza sobre a arte contemporânea, analisando o conteúdo ambíguo das criações e a possibilidade de o público ser o seu intérprete supremo. Estamos diante do Eco semioticista, que acredita piamente na decifração dos signos.

Em 1980, o autor surpreendentemente publica O Nome da Rosa, seu primeiro best-seller. O romance, que alcançou a casa dos milhões de cópias vendidas e virou filme em 1986, gira em torno de monges envenenados e um livro desconhecido de Aristóteles sobre a comédia. Nas décadas seguintes, o intelectual vê desalentado o surgimento dos genéricos de seu suspense erudito: títulos do brasileiro Paulo Coelho e do norte-americano Dan Brown, autor de O Código da Vinci. Chegou ironicamente a lamentar ter sido o responsável por esses fenômenos em uma entrevista ao jornal espanhol El País – disse que escreveu O Nome da Rosa não porque acreditasse em teorias conspiratórias, mas porque é um medievalista leitor de livros de suspense e queria divertir os outros. “Você pode admirar uma comunidade de rãs, mas não precisa crer que é uma delas.” Aqui, fala o Eco cético.

No final de 2010, passados 30 anos de seu primeiro romance, Eco lança O Cemitério de Praga, repleto de mistério, falsos documentos, erudição, personagens históricos e um narrador fictício, o tempo todo eivado de amargura e de um humor ácido, que aponta o escritor francês Alexandre Dumas como um profundo conhecedor do espírito humano por saber que sempre achamos que existe uma conspiração contra nós. Eis o Eco cínico.

Truque Repugnante

Se, em princípio, os três Ecos parecem não se misturar, eles se embaralham de tal forma que confundem os críticos. Quando se converteu num romancista de sucesso, o italiano se tornou alvo de colegas acadêmicos. Alguns o viram como um esforçado – e fracassado – herdeiro de Jorge Luis Borges e Italo Calvino, ficcionistas que mobilizaram um vasto repertório da Antiguidade clássica e medieval na costura de suas obras.

Já Ian Thomson, biógrafo de Primo Levi, um dos mais importantes escritores italianos do pós-guerra, considera Eco um equivalente bruto do francês Roland Barthes, papa da semiótica e fonte na qual o italiano bebeu. Mas um Barthes sem o talento para subverter e um pós-moderno sem o tino de Borges, como registra uma reportagem do jornal britânico The Guardian. Romancistas de porte como o anglo-indiano Salman Rushdie e o inglês Will Self veem Eco com grandes ressalvas. Para Self, ele lança mão de um truque repugnante: produz uma obra superficial e pretensamente “intelectual”, embora faça os leitores acreditarem que se trata de literatura elevada.

A vasta produção é outro ponto de atenção dos críticos. Para os padrões acadêmicos – mais inclinados a corridas longas e de fundo –, Eco é um velocista e tanto. Só em ficção, publicou entre 1980 e 2010 seis romances. Em cinco décadas de universidade, mais de 30 livros acadêmicos.

Idade média e disneylândia

Alçado ao estrelato na década de 1980, Eco ainda é, aos 79 anos, uma espécie de celebridade que transita da alta cultura ao pop. Desde o início de sua carreira acadêmica, revelou-se um sofisticado analista dos produtos feitos para a sociedade de consumo. Sua leitura sobre fenômenos de massa – como o filme Casablanca, que acredita ser uma recriação da mitologia em versão moderna – é um requinte a que poucos intelectuais se permitem. O italiano nunca escondeu também o fascínio pela Disneylândia: escreveu sobre a cidade inventada e suas atrações no ensaio Viagem na Irrealidade Cotidiana.

Da mesma forma, estamos diante de um dos maiores eruditos e conhecedores de religião e história medieval da Europa, paixão que começou quando ainda era estudante na Universidade de Turim, onde defendeu sua tese de doutorado sobre são Tomás de Aquino, publicada em 1956. Nessa mesma década de 1950, Eco fazia programas culturais na nascente RAI, a rede de televisão italiana, enquanto intelectuais liderados pelo alemão Theodor Adorno atacavam pesadamente essa mídia. Os ensaístas da chamada Escola de Frankfurt pregavam que a TV era um meio alienador para as massas e ele contra-atacava: “Elaborei uma visão de que esse instrumento poderia ser usado de diferentes maneiras. A televisão desempenhou um papel imenso na unificação linguística da Itália, que ainda era um país de dialetos”.

O Eco cético, admirador das rãs, que atribui ao fim do milênio, e não ao mero acaso, a responsabilidade por hoje as pessoas acreditarem em qualquer coisa, se enche de cinismo e faz de O Cemitério de Praga uma obra representante de seu lado mais debochado. No novo livro, o ponto central da trama é a elaboração de Os Protocolos dos Sábios de Sião, um texto falso que detalha um congresso entre poderosos rabinos europeus no cemitério de Praga para destruir a civilização cristã e as instituições do Ocidente.

Calcado em personalidades e fatos históricos, tem um único personagem fictício, segundo Eco: Simone Simonini, o tabelião rabugento, violento, desconfiado e nada confiável. Aparentemente, o autor nos conta uma história que questiona e demole tudo: anticlerical, antipsicanalítica, antissemita, anticomunista e anticapitalista. Mas, no fundo, está pregando justo o contrário: já que nossas crenças nunca são inabaláveis, podemos acreditar no que quer que seja. 

 

Fonte: Revista Bravo